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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

abnegação

3 de Setembro de 2010. Hoje foi o dia D do Processo Casa Pia. Fez, cumulativamente, nove anos que o mesmo começou. Atendendo ao historial que segundo vários membros da dita instituição, ex-membros e outros se desenvolve pelo menos até aos anos 1970, em boa verdade se impõe reconhecer que há décadas se vinha verificando a necessidade de abrir tal, tamanho processo.


Acompanhei este fenómeno jurídico-mediático durante todo o dia, ora pelos canais generalistas, ora pelos canais noticiosos. Antes de prosseguir, uma ressalva somente: não sou nada qualificado para comentar o caso na sua magnitude e especificidade, porquanto não me envolve, nunca li nenhuma das milhares de páginas do processo nem sou algum entendido em questões jurídicas. Assim, como mero espectador aliás parte indelével desse todo não apurável que é a Opinião Pública fica-me a forte sensação que houve criminosos por julgar; mais: que não houve nem se fez devida justiça para com os agora culpabilizados de jure. Não obstante, interessa-me acrescidamente atentar neste desfecho primeiro do processo em questão (literalmente!) pelo que representa para a nossa sociedade mas, mais que isso, pelo que representa para a Justiça oficiosa deste Portugal.


Digo, sem hesitação mínima nem meditação profunda, que o maior problema do meu país é a Justiça. Assim é porque todo o aparelho jurídico-penal não funciona sempre: é demasiado imperfeito, já que incoerente, moroso; e, como se isso não fosse bastante, é incerto, discriminatório até, já que tão corruptor quanto corruptível. Ora a explicação para tudo isto é, a meu ver, a seguinte: genericamente, entendamos por "Justiça" dada face sólida do Poder, socialmente reconhecida, e que assenta em dois pilares capitais, interdependentes: o controlo lógico e necessário do Terror, feito através dos mecanismos socialmente instituídos, institucionalizados portanto, que têm por missão combatê-lo, seja acautelando-o seja respondendo-lhe conforme a exigência de cada caso; o sentido de justiça na medida do possível partilhado por todos os cidadãos, convencionado pois que deve ser claramente unidireccional e, como tal, capaz de motivar toda uma consciência crítica por parte de todos que se vá traduzir numa alteração de mentalidade, essa consequente e culminantemente corporizável numa mudança de atitude na praxis.


Com efeito, algo há que obstrói o circuito deste segundo e complexo pilar; o que vai afectar, sequente e consequentemente, a conjugação e conjunção de ambos – pelo menos em Portugal, sim. Simplificando: a Justiça é altamente susceptível de falhar por uma questão de inadaptação da mentalidade portuguesa à forma de lidar com as injustiças que podem acontecer no Presente. O que tem como efeito prático, de entre outros que entretanto tenhas aferído do que venho dizendo, a não revisão das leis no sentido de readaptar as instituições responsáveis – ou, ao menos, a revisão da legislação conforme necessariamente imperioso, isto é, ao que a cada momento é tão mais acertado quanto se carece.


Há que dizer, pois, que nesta era do digital, do micro e do nano – e que porventura alguns perspectivarão até como a era simplex – não poderíamos deixar de estranhar, desconfortadamente, o que nos surge como evidente: algo ironicamente, um apego demasiado bacoco às leis mais penosas… e quantas delas ínvias! Afinal, o problema maior reside não tanto em serem antigas, mas em nunca terem sido real, constatavelmente bem feitas. Fugazmente, tomemos o exemplo da hipótese jurídica que dá pelo nome de prescrição. Que sentido faz a prescrição de um crime de pedofilia? Que sentido faz, de todo em todo, uma qualquer prescrição negativa ou extintiva? Não se ache, pois, que justiciar (conhecer-se a justa aplicação da Justiça, significo) é sempre uma questão de tempo.


Cheguemos enfim ao ponto de cruzamento das ideias expostas neste texto: este primeiro desfecho do Processo Casa Pia importa-me – e creio que deve importar também a ti, de resto – porque, expondo algumas das fragilidades da Justiça Portuguesa e dificuldades da sua aplicação, assim como vários e severos seus podres, não deixou todavia de ser um raro exemplo da sua ainda possível exequibilidade. A justiça possível, diria. E isto, note-se, à partida independentemente até de satisfazer a orientação da nossa Opinião Pública, essa a todo o momento mais ou menos determinável. Até porque se outro o caso fosse, muito haveria a lamentar, e que condenar. Como tão lucidamente veio entrementes considerar certo advogado envolvido neste processo, olhemo-lo como pedagógico. E, digo eu agora, tendo-o em mente, queiramos não permitir que de Futuro a Justiça volte a demorar nove ou mais anos a efectivar-se.



quinta-feira, 26 de agosto de 2010

arcaísmo

Hoje abordo a noção de arcaísmo. Trata-se de um tema que muito me interessa e que de certo modo me diz bastante, até. E sobre o qual desejo há muito escrever! Mas comecemos por contextualizar a coisa.

De há alguns anos para cá comecei a interessar-me pela origem das coisas – ideia que não te é nova, decerto. Poderemos, quiçá, falar de alguma espécie de obsessão de foro gnosiológico, e que ainda remanesce. Sou pois um purista, quando possível.

Apesar de pouco dado a leituras, como já tive oportunidade de te dizer, ansiava expandir o meu domínio vocabular, e a alternativa que mais prontamente se me afigurou foi fazê-lo de forma vernacular, necessariamente, já que sempre me haviam despertado curiosidade livros antigos, e tinha a fortuna de existirem alguns na minha própria casa. Sem embargo, recordo-me com incerteza que talvez o fascínio tenha surgido ainda no Ensino Básico, com a leitura do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente: maravilhava-me o Português antigo em si, bem como a mestria do autor quanto à habilidade da conjugação que cunhara para comunicar na nossa Língua – a Língua Portuguesa.

A experiência inteira que venho referindo tem sido rica e frutuosa; além do mais, toda esta situação de aprendizagem prazenteira conheceu a sua própria evolução, amadurecimento: passei, pois, do simples contacto exploratório e pontual com a literatura de terceiros de outros tempos para a inclusão dos seus vocábulos na minha própria escrita – e, conquanto ocasionalmente, revendo-me e abraçando também os seus ideários, noções e vontades. Apesar de tudo não me sinto pretensioso, vaidoso, ostensivo nessas opções – nesta atitude que é, ao fim e ao cabo, um estilo que cada vez mais reconheço e trabalho, pois que o tenho como o meu. Não poderia nem quero, dizia, sentir-me e comportar-me de modo hostil no seio da sociedade, em resultando da minha escrita: procuro ser, digamos, um coleccionador filantropo da Língua que não se acanhe de dar uso ao seu espólio. Mesmo que no decorrer dessa empresa me veja sujeito a envídias descuradas e zombarias taroucas, aliás por mim inalcançáveis em matéria de lógica e senso.

Um outro efeito não menos importante desta vera odisseia pessoal foi, claro está, ter mudado a minha percepção do conceito de arcaísmo. De facto, se antes julgava – e creio que em companha da maior parte dos espíritos – que aquilo que se considera arcaísmo é, algo literalmente, para “deixar na arca” do passado da Língua, hoje consigo pensar bem diferente – orgulhando-me disso, aliás. Entendo, pois, que todas as palavras têm o seu valor inegável, esse não minimizável nem desconsiderável apesar do desgaste a que mais ou menos se vai cada vendo sujeita com o passar do tempo. Em suma: as pessoas morrem, as palavras não. Pelo que as línguas morrerão só mesmo se deixarmos.

Percebe, pois: não se trata de imitar o antigo, de querer reviver o passado; não se trata de começar agora a escrever nas formas primitivas (embora eu seja da opinião que não faria mal a ninguém uma História da Grafia, ainda que básica… e como lamento não ter eu próprio tido essa oportunidade na escola!), com o intuito de ridicularizar os termos que poderemos considerar como tendo uma premência semântica (mais) actual; não se trata de vaidade exibicionista de cultura, conhecimento, versatilidade, etc..

Trata-se, sim, de uma escolha pessoal coerente com toda uma mundividência, já que ecoa para lá dos domínios da escrita e da oralidade enquanto instrumentos quer pragmáticos, quer artísticos à nossa disposição. Porquanto é escrever recorrendo a tudo o que existe para me expressar o melhor e mais acuradamente possível, sem tabus nem outros tipos de barreira que não a da literacia esclarecida, quero dizer, o sentido exacto que as coisas têm, dado não poderem tê-los a todos cumulativamente. Curiosamente, reparamos, assim acabo combatendo, ainda que de guisa inconsciente, uma tendência particularmente incidente nos nosso tempos, e que pelos vistos se faz também sentir em domínios do idiomático. Falo do consumismo ávido, desenfreado do que é novo ou recente, por tal novidade, e que tem como um de entre vários resultados visivelmente devastadores a rejeição, a condenação ao esquecimento e o voto ao abandono daquilo que precede, do mais antigo ao imediatamente anterior, por o considerar ultrapassado, decadente – incapaz até de continuar a satisfazer a necessidade que havia servido, e para a qual havia possivelmente sido criado.

E por aqui me fico. Mas não sem te deixar um apelo involuntário: que também tu lutes contra as amarras dos mais fortes e tradicionais preconceitos/pressupostos sociais e… dês volta à Arca! Quem sabe, como eu, te divertes pelo meio, e virás a sentir-te mais entusiasmado e rico, porque mais e melhor conhecedor de ti mesmo e do nosso mundo.

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terça-feira, 10 de agosto de 2010

novidade

Está por nascer o homem novo.


Alguém sensível e preocupado.

Alguém compreensivo e coerente.

Alguém honesto e educado.

Alguém interessado, inteligente.


Está por nascer o homem novo?

domingo, 25 de julho de 2010

alternância

Este ano, creio ter descoberto que não existe aquilo a que chamamos de férias; há, isso sim, uma variância de ritmos de trabalho. De facto, qualifico engraçadamente de variância tal suceder porque ninguém quer uma qualquer variação; quererá antes uma (ou alguma, consoante o caso) que não ponha em risco um equilíbrio que é pessoal e intransmissível. E que deve, aliás, ser perfeitamente conhecido por cada um à partida.

Ora, nestas pausas que todos vamos tendo, e que são geralmente por nós tanto apreciadas, salta à vista a maior facilidade e mesmo apetência para o exercer do descanso. As próprias actividades por que optamos são diferentes: coisas que, à primeira vista, consideramos mais leves porque menos exigentes, mais prazenteiras porque interessantes. Mas que, sem embargo, não deixam de nos fatigar – já que, como qualquer coisa na vida, nos requerem certo esforço. E até o tempo, o próprio tempo, enquanto conceito que por norma temos altamente presente durante todo o ano, nos permite a rara, difícil excepção de perdê-lo. O relógio esquece-se no braço, em casa até, com muito mais facilidade.

Claro que só nos pode fazer bem quebrar a rotina momentaneamente: seja substituindo-a, seja cessando-a. Na verdade, alimentam vários doutos em neurologia que é procedimento a ter em conta para prevenir doenças como a terrível alzheimer! Mas, ainda assim, é de evitar o repouso absoluto, o descanso total, o ócio por completo. Tudo o que se faz deve ser proveitoso, mesmo que a nível puramente intelectual. É, quiçá, esse o verdadeiro descanso – e o melhor de todos. Seja lá como for, fundamental é aproveitar todo e cada momento.

sábado, 26 de junho de 2010

literacia

Em claro tom de desabafo, o primeiro-ministro, José Sócrates, disse recentemente sentir-se muitas vezes só a puxar [pelas energias d]o país. Eu poderia aproveitar esta frase como ponto de partida para alguma reflexão política, mas não irei fazê-lo. Prefiro falar-te da emoção pessoal que tal dizer provocou em mim.

Supondo-o sincero nessas suas palavras, obrigo-me rever no primeiro-ministro. Pois tal como ele, também eu me sinto só na minha atitude positivista, animadora, incentivadora, etc.. E é em muito graças a isso que me espanta o facto consumado que é dizer tanto aos outros e receber tão pouco em troca.

Com efeito, por vezes sinto-me diferente pela minha atitude, que entendo como misto de curiosidade pessoal e ímpeto social. Estaremos no domínio da sensibilidade?

Ultimamente tenho lido bastante. Talvez já goste mais de ler. Seja como for, uma coisa é certa: agrada-me na literatura a sua constância e transparência. Para mim, quanto mais clara a forma de que se reveste a mensagem a passar pela obra literária, melhor a literatura. Porquanto mais útil e agradável a própria leitura. De facto, infelizmente nem todos têm capacidade de escrever bem. O que significa, forçosamente, que nem todos conseguem exprimir-se com sucesso pela escrita. Vivemos num mundo de pontuação selvagem, e em que a própria sinonímia chega a ser sinal de confusão e ignorância. "Bom-dia" não é o mesmo que "bom dia": temos, por consequência, quatro tipos de pessoas: as que não o sabem; as que não o sabem mas até gostariam; as que o sabem mas não o porquê de tal; as que sabem e compreendem o porquê, o sentido de assim ser.

Acaso, seria eu razoável se considerasse que os livros me oferecem mais que as pessoas? Ainda que preferisse a hipótese de não aceitar a realidade – o que me seria impossível , não posso pois entender tal como justo; nem tão-pouco creio legítima a comparação. Não obstante, talvez a maior e mais saliente diferença seja esta: os livros são abertos por quem queira, ao passo que as pessoas abrem-se se e a quem queiram. Mas há que aceitar a coisa com a resignação que se impõe – da mesma forma que nem todos os livros nos interessam, não valemos, cada um, o interesse de todos. Repare-se que, aqui mesmo, com alguma inocência e bondade poderia ter feito pergunta pertinente, em vez de pertinaz observação.

Se os livros fossem pessoas talvez não falassem tanto. Se as pessoas fossem livros, talvez fossem mais coerentes e compreensíveis. E, contudo, nem todos poderíamos ser livros ou pessoas – ou a própria vida não seria uma experimentação concreta.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

bonifrate

Ele há coincidências assustadoras e fantásticas. Oh se as há!

Conversando com o meu irmão, dei-me conta que nos últimos tempos temos vivido uma ou duas experiências sociais assaz semelhantes: aqui e ali, acabamos por vir a descobrir que há pessoas que não merecem o tempo que outrora lhes dedicámos. Que talvez nunca o tenham verdadeiramente merecido – ainda que, diga-se em abono da verdade, a culpa de não percebermos logo tal recaia em parte sobre nós próprios.

Não se trata de modéstias nem vanglórias pessoais (ou de família!), qual gesto de conforto do ego; trata-se apenas de falar verdade: o único mal que fica de se ser superior a outros é vermo-nos depois, sempre e a todo o momento, privados de partilhar com essoutros tal superioridade. Só nossa – valor absoluto em termos comparativos específicos, leia-se. E tão manifesta que ela acaba, mais tarde ou mais cedo, por nos surgir. Que respeito por quem não nos respeita? Para quê falar a quem não nos quer ouvir? De que servem as explicações merecidas, quando dadas a quem não tem nelas o menor interesse? Porquê insistirmos em recuperar algo que expressamente nunca foi como até então sempre percepcionáramos (ou, pelos menos, era tal a nossa tendência)?

Alguém de quem nunca tal iria esperar disse-me certo dia “deves mudar ou vais tornar-te numa ilha”. Não me esqueci, e acho mesmo que nunca me esquecerei de tais palavras. Tão duras e tão injustas – contudo tão verdadeiras em certos momentos! Mais me transtornou perceber, com o passar do tempo e por me ver forçado a convívio circunstancial com tal criatura de deus, que essa mesma pessoa se havia na verdade tentado projectar em mim. Fê-lo sem sucesso – observa-se. Com efeito, falo de alguém de mau carácter como poucas pessoas conheci; de alguém que é feliz à custa da infelicidade dos outros, e cujo prazer e satisfação pessoais são uma possibilidade atingível pela via da falsidade, da ironia e da maledicência. Pois eu não sou assim. Mais: nem conseguiria sê-lo, mesmo que quisesse!

Defeito ou feitio, este meu? De que me vale ser assim, se sou das poucas excepções? Oferece portanto perguntar: serão estas experiências evitáveis, contornáveis? Infelizmente, creio que não. Se descobrimos que não podemos mudar o mundo, isso deve-se, antes de mais, ao próprio mundo não compreender que precisa de ser mudado! Adoro um provérbio que descobri há uns meses, e que reza assim “o diabo está nos detalhes”. Creio que se pode aqui enquadrar, talvez com uma ligeira adaptação a este melindroso contexto que constitui, afinal, o tão denso quanto surpreendente domínio das relações sociais: “o diabo revela-se-nos nos detalhes”. Porque a fronteira entre bem e mal, sendo ténue, tem de ser identificável.

Recordo-me – e vem a propósito – dum episódio pessoal que ilustra bem como não bate a bota com a perdigota... como impera o faz como eu digo – não faças como eu faço: estava eu no 10º ano e, em visita de estudo, parávamos numa área de serviço para tomar pequeno-almoço. Ora eu, que então como hoje nunca dediquei o meu tempo a reflectir desnecessariamente sobre o real e óbvio impacto das pessoas no ambiente, limitando-me a dar conta e recado do que comigo é, achei-me entretanto a correr desenfreadamente atrás do plástico da palhinha do pacote do leite, que se soltara e de mim fugia ao sabor de certa ventania. Enquanto isso fui reparado, comentado, zombado por todos os colegas que presenciavam a cena. Inclusive por uma colega que, ao menos naquela altura, se dizia ambientalista – a mesma colega, na verdade, que também não hesitava em mandar o papelzinho da pastilha para o chão quando bem lhe apetecia. Fiquemo-nos por aqui (ao menos por agora) em matéria de historietas tristes para e bem à laia de certos terceiros. Porque, constato, nem o passado recente foi mais risonho. Eu na universidade até tenho Ecologia Humana! – que é coisa que tanta gente que por aí há precisa mais. Que tanta gente precisa. Que se precisa. Enfim: disso e de real formação cívica.

Outra conclusão que fica é, portanto, que o mundo funciona suportado em falsas morais; salvo excepções importantes porquanto minoritárias. Ora, a coisa não pode correr bem quando temos ateus a quererem ser mais papistas que o papa. Enfim: sensibilidades, sempre diferentes – que nasceram e que hão-de morrer com cada um.





domingo, 23 de maio de 2010

observância

Toda a vida lembro ter ouvido dizer “estamos em crise”. Mas proporciono-me agora, muito mais que antes, reflectir sobre a sua noção. Essa tão abstracta quanto intensa. Pergunto então o que é a crise, afinal.

É para muitos familiar a noção chinesa de crise: um ideograma composto por dois caractéres interessantemente combinados – o de perigo e o de oportunidade.

Pois bem: creio que falar em crise é, no fundo, falar com extraordinária clareza, mas também redundância, da normal processualidade da nossa sociedade. Quero dizer: a crise é algo absolutamente perceptível, verdadeiro; e, naturalmente, expectável.

Bastaria olhar para uma só vida, em analogia: qualquer ser animado cresce; e decai, depois. Ora, cada das nossas sociedades é composta por milhares – milhões até, em não raros casos – de homens e mulheres. Sendo que cada, seguramente ao seu próprio ritmo, cresce; para em seguida decair também. E tudo isto se dá ininterruptamente. Não será, por isso mesmo, a familiaridade com a crise um sinal de vivacidade? Mais: de progresso?

Não queiramos pensar diferente dos chineses, negando desse modo uma das mais empíricas verdades: admitindo que nada é estático e tudo se altera, deveríamos confinar a apreciação de crise ao que não funciona mais, porque esgotado. Ao que carece de actualização, de adaptação ao mais recente estado das coisas. Ao que nem sempre é possível de preservar, devendo nesse caso ser deixado cair.

Talvez toda a vida tenha ouvido falar de crise (e o mais certo é que continue a assim ser) porque tenho de ser lembrado que nunca tudo está bem, e que o que está mal é para mudar. Porque não me posso dar ao luxo de descartar qualquer oportunidade, mesmo que não seja para mim claro a priori qual a dimensão do perigo lhe subjacente.

terça-feira, 27 de abril de 2010

apelação

Cravo de Abril.

Liberdade desejada

Que sopra ao pátrio vento.

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Tormento feito luz, momento teu!

Cravo que seduz; e que se compadeceu

De mim, nesta portuguesa cruz que esqueceu.

Nesta ânsia repetida de reviver o que tanto nos doeu.

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Liberto vieste e refém te tornaste, ó cravo que já tanto amaste.

Liberto vieste; liberto ficaste uma vez mais, porque assim o quiseste.

Ó Cravo: meu vermelho e verde cravo... Oh, que espelhas o meu Portugal!

Se de mim te lembraste sem de mim perguntar, vê pois como ficaste!

Afasta-te dos que te querem renegar, anda: junta-te a mim.

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Ensinas-me a tua trivial luz; ignoras que sou nada?

Partiste a ditadura que minha alma secara;

Feito insuperável que não se esgota...

Flor que minha alma conforta!

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Insurge-te uma vez mais.

Dá voz aos desiguais,

Cravo de Abril.

sexta-feira, 26 de março de 2010

reposição


Bem Bem! Já não se via uma bandeira tão esteticamente agradável no Parque Eduardo VII (Lisboa) há... um século? Os monárquicos activos andam muito inspirados.


Hoje, 23 de Março, alguns privilegiados que passavam nessa zona puderam testemunhar uma efeméride histórica até cerca das 12:00h. Certamente achando-se confusos num primeiro momento, puderam depois ter-se impressionado, cedendo ao espanto que deverá ter constituído depararem com uma bandeira monárquica portuguesa. Gigante (6 m x 4m). Em meia-haste (indício de luto nacional).


para mim foi D. Sebastião que voltou: ergueu-se do túmulo, nos Jerónimos, para vir pôr a mão na consciência do seu nobre povo. O que não deixa de querer dizer que se interessa mais pelos 14 anos, hoje a comemorar-se, do “Príncipe da Beira”, que pela mudança na liderança do PSD. “Isto já não vai lá só com a alternância política clássica do pós-25 de Abril”, pensará, “é preciso alterar mais qualquer coisa – a começar pela constituição.” Foi a justa vingança por o Ministério da Cultura de Isabel Pires de Lima não ter permitido, aqui há uns anos, que se abrisse o sarcófago: para que se procedesse, seriamente, ao exame de ADN das ossadas, a fim de confirmar a identidade das ditas. Que tal recuperar a contenda, que Gabriela Canavilhas é tão sensível e competente – nomeadamente criando uma petição na net, até.


Eu soube do acontecimento que está – ou deveria estar, melhor dizendo – na ordem do dia quase por acidente: noticiaram muito fugidiamente nas televisões privadas. Na RTP talvez haja um comprometimento demasiado com o regime – o que, a ser verdade, não é surpresa...


E, porque normalmente tudo o que acontece consta na Internet, quando pesquisava sobre isto deparei-me ora com o vídeo que explicava a iniciativa – fiquei a saber da existência dos Carbonara – Movimento Monárquico para as Massas, originalíssimo! –, ora com uns escritos pessoanos sobre a república, e sobre a própria bandeira. (Já aqui te falei do assunto, logo não se justifica retomá-lo.) Já tinha ouvido qualquer coisa sobre o ressentimento de Pessoa com a 1ª República, pelo que isto serviu de confirmação. Interessante opinião, com o seu algo de actualidade.


Em todo o caso, eis os links:

para o Movimento e o tal vídeo)

http://www.facebook.com/group.php?v=wall&ref=ts&gid=107254729303275

para o testemunho de Fernando Pessoa cuja autenticidade, aliás, me limito a confiar)

http://esquinas.org/blog/2010/02/01/o-que-pensava-fernando-pessoa-da-republica/



terça-feira, 16 de março de 2010

desgosto

Comecei esta semana lectiva com uma pequena apresentação de grupo sobre a Questão de Olivença. E quando digo “comecei” digo-o de forma absolutamente literal, que eram 8:30h!

Proponho-me aqui dar a minha visão sobre o assunto, e não tanto reproduzir uma apresentação à guia turístico, como acabei por fazer então. Afinal, sempre que bem intencionados, não devemos deixar escapar nenhuma oportunidade. E porque o fim é bom, o meio justifica-se!


Não conhecia a problemática em detalhe, ainda que já estivesse mais que minimamente familiarizado. Desde logo por razões geográficas: ainda recordo um ou dois passeios de carro com a mãe para aquelas bandas. Depois, por iniciativa pessoal, em pesquisas pontuais na internet a fim de saciar a justificada, imperfeita curiosidade. Ah, o espanto e a confusão... a magia(!) que foi não perceber se ali, naquele imenso espaço a Este do Guadiana, estava em Portugal ou já em Espanha!! Enfim: lembra-me aquele dizer que toda a regra tem a sua excepção a confirmá-la… e não é que, no caso ibérico, até a fronteira entre as duas nações de tal não se livra?!


Mas que sucedeu afinal? Vejamos por alto: Portugal reivindica à Espanha a entrega do território, que tem esta como sua soberana de facto ilegitimamente – desde 1817, pelo menos. E Portugal fá-lo de forma muito discreta, passiva. Para não dizer pontual, porventura ocasional até. Importa-me dizer que faço esta consideração baseando-me estritamente numa óptima mediática: ou não soubesses tão bem quanto eu que, neste nosso mundo massificado de hoje, o que não aparece não existe!


A trama jurídica é extensa, complexa. Mas não é complicada de perceber, desde que se o procure fazer de forma cronológica. Missão que deixo para ti, na benévola crença de que as minhas palavras te inflamem a curiosidade para o assunto.


Só me ocorre, por ora, problematizar sobre o próprio problema… Que espécie de nação é a nossa, que tão desavergonhadamente se permite abrir mão do que é seu para a poderosa vizinha em surdina? Como podemos, sequer, ousar preparar o futuro, sem resolvermos o passado? Temos 100 marcos de fronteira por colocar, vamos lá ser pragmáticos… Acabe-se, pois, de uma só vez com esta normalidade anormalizada: que falem os dois chefes de estado, os dois ministros dos negócios estrangeiros e, ultrapassando a vergonha óbvia que sentem, decidam definitivamente e a bem: reconheçamos nós a soberania espanhola sobre as terras oliventinas ou queira a imensa Espanha devolver-nos de bom grado o que é nosso. Terceira via, e pacífica? Pois também a há, claro: referendo aos oliventinos. Não haverá ressentimentos, seja o resultado qual for – cá na Ibéria não nos permitiríamos esquecer simplesmente, de um momento para o outro por interesse, que a Revolução Francesa (1789) já amadureceu; que a democracia é hoje, imperiosamente, mais livre e respeitada.


Infelizmente nem tudo corre nesta vida como sucederia se dependente fosse, apenas e tão só, da nossa própria vontade. Estou portanto a dizer-te que, apesar da visível frieza algo despudorada de que se revestem as minhas palavras na análise suprafeita – e dizendo-o numa ideia –, não ignoro o mundo real. Não ignoro a política do meu país – ao menos essa, sim! –: não ignoro o governo diariamente descredibilizado com ministros (Primeiro inclusive) arrogantes e dúbios na sua compostura – acção e comunicação, digo – enquanto decisores políticos, em particular o senhor ministro dos negócios estrangeiros – inteligente, contudo desaconselhado pelo seu médico a grandes viagens, por motivo de saúde (ou, melhor, dizendo, de sua falta); não ignoro também, e forçosamente, o presidente da república, digníssimo e fidelíssimo representante dos portugueses conforme provou na sua reportagem organizada mais recente, a cargo da Original [sic]: tem um retrato do papa no gabinete, aprecia boa comida portuguesa e até pagamos para lhe seleccionarem o essencial das notícias dos jornais, dia após dia – sabê-lo foi para mim um choque tão interessante quanto preocupante, naturalmente. De facto, na nossa república da medíocre regular funcionamento das instituições, o pior que pode acontecer a respeito de Olivença é mesmo o que já ocorre – nada.


Ah! E já agora, para te deixar atormentado com a beleza do horrível , deixo-te com a cereja no topo do bolo: o brasão da dita ciudad é, obviamente, único em toda a España. Mas atenção: é-o, mais que por outro motivo, pela sua coroa castelar cimeira – bem ao estilo português, de facto! Agora… será mesmo Olivença muy noble, notable y siempre leal?