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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

arcaísmo

Hoje abordo a noção de arcaísmo. Trata-se de um tema que muito me interessa e que de certo modo me diz bastante, até. E sobre o qual desejo há muito escrever! Mas comecemos por contextualizar a coisa.

De há alguns anos para cá comecei a interessar-me pela origem das coisas – ideia que não te é nova, decerto. Poderemos, quiçá, falar de alguma espécie de obsessão de foro gnosiológico, e que ainda remanesce. Sou pois um purista, quando possível.

Apesar de pouco dado a leituras, como já tive oportunidade de te dizer, ansiava expandir o meu domínio vocabular, e a alternativa que mais prontamente se me afigurou foi fazê-lo de forma vernacular, necessariamente, já que sempre me haviam despertado curiosidade livros antigos, e tinha a fortuna de existirem alguns na minha própria casa. Sem embargo, recordo-me com incerteza que talvez o fascínio tenha surgido ainda no Ensino Básico, com a leitura do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente: maravilhava-me o Português antigo em si, bem como a mestria do autor quanto à habilidade da conjugação que cunhara para comunicar na nossa Língua – a Língua Portuguesa.

A experiência inteira que venho referindo tem sido rica e frutuosa; além do mais, toda esta situação de aprendizagem prazenteira conheceu a sua própria evolução, amadurecimento: passei, pois, do simples contacto exploratório e pontual com a literatura de terceiros de outros tempos para a inclusão dos seus vocábulos na minha própria escrita – e, conquanto ocasionalmente, revendo-me e abraçando também os seus ideários, noções e vontades. Apesar de tudo não me sinto pretensioso, vaidoso, ostensivo nessas opções – nesta atitude que é, ao fim e ao cabo, um estilo que cada vez mais reconheço e trabalho, pois que o tenho como o meu. Não poderia nem quero, dizia, sentir-me e comportar-me de modo hostil no seio da sociedade, em resultando da minha escrita: procuro ser, digamos, um coleccionador filantropo da Língua que não se acanhe de dar uso ao seu espólio. Mesmo que no decorrer dessa empresa me veja sujeito a envídias descuradas e zombarias taroucas, aliás por mim inalcançáveis em matéria de lógica e senso.

Um outro efeito não menos importante desta vera odisseia pessoal foi, claro está, ter mudado a minha percepção do conceito de arcaísmo. De facto, se antes julgava – e creio que em companha da maior parte dos espíritos – que aquilo que se considera arcaísmo é, algo literalmente, para “deixar na arca” do passado da Língua, hoje consigo pensar bem diferente – orgulhando-me disso, aliás. Entendo, pois, que todas as palavras têm o seu valor inegável, esse não minimizável nem desconsiderável apesar do desgaste a que mais ou menos se vai cada vendo sujeita com o passar do tempo. Em suma: as pessoas morrem, as palavras não. Pelo que as línguas morrerão só mesmo se deixarmos.

Percebe, pois: não se trata de imitar o antigo, de querer reviver o passado; não se trata de começar agora a escrever nas formas primitivas (embora eu seja da opinião que não faria mal a ninguém uma História da Grafia, ainda que básica… e como lamento não ter eu próprio tido essa oportunidade na escola!), com o intuito de ridicularizar os termos que poderemos considerar como tendo uma premência semântica (mais) actual; não se trata de vaidade exibicionista de cultura, conhecimento, versatilidade, etc..

Trata-se, sim, de uma escolha pessoal coerente com toda uma mundividência, já que ecoa para lá dos domínios da escrita e da oralidade enquanto instrumentos quer pragmáticos, quer artísticos à nossa disposição. Porquanto é escrever recorrendo a tudo o que existe para me expressar o melhor e mais acuradamente possível, sem tabus nem outros tipos de barreira que não a da literacia esclarecida, quero dizer, o sentido exacto que as coisas têm, dado não poderem tê-los a todos cumulativamente. Curiosamente, reparamos, assim acabo combatendo, ainda que de guisa inconsciente, uma tendência particularmente incidente nos nosso tempos, e que pelos vistos se faz também sentir em domínios do idiomático. Falo do consumismo ávido, desenfreado do que é novo ou recente, por tal novidade, e que tem como um de entre vários resultados visivelmente devastadores a rejeição, a condenação ao esquecimento e o voto ao abandono daquilo que precede, do mais antigo ao imediatamente anterior, por o considerar ultrapassado, decadente – incapaz até de continuar a satisfazer a necessidade que havia servido, e para a qual havia possivelmente sido criado.

E por aqui me fico. Mas não sem te deixar um apelo involuntário: que também tu lutes contra as amarras dos mais fortes e tradicionais preconceitos/pressupostos sociais e… dês volta à Arca! Quem sabe, como eu, te divertes pelo meio, e virás a sentir-te mais entusiasmado e rico, porque mais e melhor conhecedor de ti mesmo e do nosso mundo.

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